A revolução de 1924 completará um século em julho. Há muitas semelhanças entre o Brasil daquela época e a atualidade política, sobretudo quanto à polarização ideológica, mas o Oeste e o Paraná de hoje são radicalmente diferentes de um século atrás. Isso ocorre porque uma das mais importantes consequências do movimento tenentista foi abrasileirar a região.
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Nos cemitérios ao redor de Catanduvas repousam tristemente os restos de jovens militares brasileiros jogados a lutar uns contra os outros encarniçadamente. O pior efeito da polarização não é a infantil troca de ofensas, mas o horror do morticínio que o ódio desencadeia quando chega ao extremo.
Apesar dos sacrifícios desses jovens militares e dos civis que aderiram por força de hierarquia ou escolha aos dois lados da polarização, as lutas de 1924 tiveram o efeito positivo de libertar o Oeste do Paraná, na época entregue ao domínio estrangeiro.
Não restaram, na economia ou na sociedade, traços do sistema de poder que vigorava na região antes de 1924, mas ainda sobraram ligações como o superado controle estrangeiro por nomes de cidades e acidentes geográficos.
No geral, a maioria dos nomes que remontavam ao domínio de argentinos ou ingleses foram apagados da memória histórica e da geografia. Caixão, por exemplo, era o nome da localidade paraguaia existente onde hoje se expande a cidade de Cafelândia.
Colonizar requer nome atraente
Caixão, em português, vem de “Cajón”, em espanhol. No livro Recordações de Viagens ao Alto Paraná, o engenheiro Arthur Martins Franco narra o episódio em que pediu ao novo comandante da Colônia Militar do Iguaçu, coronel Navarro Drumond, para acabar com o mais vil instrumento de tortura praticado na prisão do quartel em Foz do Iguaçu: “El cajón”.
“O [ex-comandante] tenente Pimenta de Araújo, para melhor castigar aqueles que caíam no seu desagrado, mandara colocar dentro de um dos quartos da casa que servia de cadeia, um grande caixão, onde cabia uma pessoa de cócoras ou mal sentada e dentro dele mandava prender a quem desejava castigar não somente as praças que estavam sob seu comando, mas também os civis que incorriam em suas iras”.
Não foi o tenente Pimentel que inventou “el cajón”, prática que apenas copiou das comissiones, milicias das obrages que oprimiam os mensus, trabalhadores paraguaios das grandes ervateiras que dominavam o Oeste antes da revolução.
Ao ocupar a região do Rio Piquiri, o tenente revolucionário João Cabanas prendeu Santa Cruz, o capataz da obrage Compañia de Maderas del Alto Paraná pela suposição de que estaria mancomunado com o governo para bloquear os rebeldes.
Seria apenas uma detenção estratégica, sem maiores consequências. Mas a atitude de Cabanas, o criador da guerra psicológica no Brasil, mudou ao saber pelos explorados detalhes a respeito da escravidão que Santa Cruz impunha aos mensus e as torturas e assassinatos que praticava.
Crueldades sem fim
O professor guairense Miguel Ribeiro Camargo contou que o capataz Santa Cruz tinha um cemitério particular na região de Cafelândia.“Santa Cruz, muitas vezes, segundo diziam, mandava o peão, quando estava condenado à morte, subir em árvores, depois ele a alvejava e matava como se fosse assim um passarinho e enterrava no tal cemitério” (depoimento ao historiador Ruy Christovam Wachowicz no livro Obrageros, Mensus e Colonos).
O cajón, usado para torturar os trabalhadores do Oeste paranaense desde o século XIX, era uma variação do escafismo persa, que consistia em trancar o condenado em uma caixa de madeira com os membros expostos e besuntados com mel, para ser devorado por insetos.
Santa Cruz tinha um instrumental sofisticado para julgar quanto os mensus deveriam receber pelo trabalho feito na coleta do mate, transporte de madeira e trabalhos portuários.
Ele chamava o peão ao seu escritório e o colocava em uma cadeira sob a qual havia um alçapão. Se a empresa devia pouco ao mensu, pagava e ele voltava ao serviço. Mas se o mensu quisesse receber os atrasados e ir embora da obrage, Santa Cruz usava o alçapão para o infeliz desabar no porão, onde seria torturado e morto.
“No acerto de contas ele [o mensu] sentava lá e tinha um negócio que destravava e caía no fundo [de um buraco]. Este dispositivo era o sótano*” (Miguel Camargo).
Tomando conhecimento dessas atrocidades, o tenente Cabanas lhe aplicou uma “surra de espada”, episódio que trouxe simpatia popular à revolução.
*Sótano: porão, em espanhol.
Dois mil escravos
Santa Cruz reinava sobre dois mil mensus entre o Rio Paraná e a região da atual Cafelândia e seu nome permaneceu na sede da empresa: Central Santa Cruz.
“Esse homem foi um verdadeiro algoz para os mensus de [Júlio Tomás] Allica. A população local conta até hoje os horrores praticados por esse gerente de produção” (Ruy C. Wachowicz, O Império de Allica no Oeste paranaense, jornal Nicolau).
El cajón, o odioso instrumento de tortura, foi mimetizado na literatura eufemista dos cronistas oficiais em objeto de piedade e humanismo: o caixão de defunto.
Costuma-se contar o início da história de Cafelândia com uma lenda improvável: ao chegar para se estabelecer no local, ainda nos tempos do ciclo da erva-mate, os colonos encontram à beira de “um riacho” uma urna mortuária abandonada pelos ervateiros paraguaios.
Na verdade, o lugar era conhecido como Cajón (Caixão) desde antes da colonização. Mas nem o caixão da piedade substituindo o amaldiçoado caixote da tortura atendia aos interesses dos colonizadores, ávidos por atrair compradores de terras.
Foi assim que se deu ao lugar batizado pelos paraguaios como Cajón o nome de “Cafelândia”. Era uma tentativa de valorizar as qualidades produtivas da terra, ignorando que por diferenças de clima a cultura do café não teria na região tanto sucesso como no vizinho Norte.
“Caixão” foi maquiado como “Cafelândia”, mas o nome da Central Santa Cruz permaneceu inalterado. Em todo caso, a humanidade foi vingada via justiça poética pela morte violenta sofrida pelo hediondo capataz: ele foi executado a golpes de ferramenta veicular por mensus que o apanharam na estrada após um desarranjo no automóvel que o transportava em Quatro Pontes.
“Mercedes mora aqui”!
Não foi só o nome de Santa Cruz que permaneceu intocado depois da vinda dos projetos de colonização. O mais interessante é o caso de Mercedes.
Conta-se que no dia 11 de novembro de 1952 o fiscal Pedro Dalprá, da Industrial Madeireira e Colonizadora Rio Paraná 5/A (Maripá), colocou um marco de madeira no cruzamento de duas picadas – futura Avenida João XXIII, esquina com Rua Mário Tota. Nele estava escrito, em vermelho: “Aqui é Mercedes”.
O primeiro morador do local, o colono Afonso Zanelatto, vindo de vindo de Arroio Trinta (SC), narrou que esse era o nome da bela filha da família Salvim, que fazia a extração de madeiras na região. “Era muito bonita, morena de olhos grandes e cabelos volumosos, andava sempre bem-vestida e perfumada”.
A Vila Mercedes foi distrito administrativo de Toledo em 1958, passou a integrar o território municipal de Marechal Cândido Rondon em 1962 e é Município desde 1993.
Quanto a Pedro Dalprá, ele foi um dos primeiros moradores italianos de Cascavel, chegando em 1946. Sua bela esposa morreu logo depois da chegada. Seis anos depois, a também bela paraguaia Mercedes, nome escrito por ele com tinta vermelha numa placa de madeira, dava nome a uma cidade.
1924: 100 anos da revolução
Um ano depois de denunciar fraude nas eleições de 17 de janeiro de 1923, que deram vitória ao caudilho Borges de Medeiros, as oposições gaúchas se uniram formando a Aliança Libertadora.
Sob a liderança de Assis Brasil, a AL tinha como objetivo a luta pela liberdade política frente aos desmandos e perseguições de Medeiros. Esse movimento é a origem, no Sul, da agitação tenentista que resultaria na chamada Revolução Esquecida de 1924, a tentativa de derrubar pelas armas o presidente Artur Bernardes.
Assis Brasil logo seria nomeado pelos tenentes como o “chefe civil” da revolução. Em carta, durante a organização do levante armado, o general rebelde Isidoro Dias Lopes comunicará ao capitão Luiz Carlos Prestes que Assis foi encarregado da “direção política, administrativa, financeira e mesmo militar” da revolução.
Começava naquele momento, em meados de janeiro de 1924, o movimento revolucionário que ainda nesse mesmo ano passará a dominar o Oeste paranaense durante oito meses, dando origem em 1925 à Coluna Prestes.

Fonte: Alceu Sperança
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