Grilo de Santa Cruz: tragédia e progresso

O Grilo Santa Cruz abrangeu grande parte do Oeste paranaense. Um crime que o tempo e o desentendimento entre os governos federal e estadual conseguiram compensar

Em julho de 1952, cumprindo promessa feita aos posseiros, o governador Bento Munhoz promoveu a transferência do Departamento de Geografia, Terras e Colonização (DGTC) da Secretaria da Agricultura ao seu gabinete, para agilizar a regularização fundiária.

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Ao mandar mais agentes e policiais para a região de conflito agrário, a intenção era animar os ocupantes da terra a ficar nela para resistir a qualquer tentativa de expulsão até que a Justiça se pronunciasse em definitivo, mas o resultado foi estimular as colonizadoras irregulares a se livrar o quanto antes dos posseiros. Um barril de pólvora que inevitavelmente iria explodir.

Na verdade, o barril estava se enchendo de pólvora havia décadas, por falta de soluções adequadas, com os atritos entre os governos estadual e federal, a ação armada de jagunços municiados por empresas colonizadoras e a resistência camponesa. 

Nesse caso, pólvora de longa acumulação já estava à beira da explosão em 15 de setembro de 1952, quando a Sociedade Colonizadora União d’Oeste Ltda, com sede em Apucarana, comprou, por 600 mil cruzeiros, 90 mil alqueires paulistas que viriam a formar a glebas São Silvestre, Rio Jong Kong, Rio dos Jesuítas e Rio Azul.

As glebas faziam parte de um antigo latifúndio denominado “Santa Cruz”, também conhecido por “Cachoeira” ou “Rio dos Patos”. Com a intenção de promover um amplo projeto de colonização, a União d’Oeste comprou a ampla propriedade que em vários pontos estavam ocupadas por posseiros autorizados pelas políticas estaduais de incentivo à ocupação de terras devolutas.

O carrasco Santa Cruz

Até essa ocasião, a área acumulava uma longa história. “Santa Cruz” era o nome do cunhado e administrador da obrage de Julio Tomas Allica, que se estendia desde Porto Mendes a imprecisos limites a Oeste.

“Santa Cruz carregava a violência no sangue. Tinha a função de administrador, capitão do mato e capataz. Homem de confiança de Allica. De sua sede, batizada com o seu nome, percorria a imensa obrage montado num cavalo zanho, sempre se fazendo acompanhar por quatro ou seis capangas bem armados e escolhidos a dedo” (José Augusto Colodel, Oeste sombrio: terra de Allica, terra de Santa Cruz).

Mas não foram Allica e seu sádico administrador, cuja obrage só foi iniciada em 1902, que deram origem a essa história. Desde antes, ainda no Império, houve uma longa série de disputas judiciais.

Muito antes, em 1843 teria* havido uma suposta disputa judicial entre dois pretensos proprietários da área: Francisco Antonio dos Santos e seu vizinho Salvador Correa da Silva, levada ao juiz de paz da Freguesia de Guarapuava, Joaquim José de Lacerda. 

O juiz teria determinado que as terras disputadas fossem divididas entre os dois. Salvador ficou dono de parte do imóvel situado à margem direita do Rio Piquiri com o nome de Guavirova e Francisco manteve a parte do imóvel situado à margem esquerda, com o nome Cachoeira.* O emprego do verbo ter no futuro do pretérito se explicará na continuidade.

“Fraude inominável”

Em 1844,Francisco mudou o nome da propriedade – Cachoeira –, para “Santa Cruz” e o vendeu a Custódio Gonçalves, que por sua vez a transferiu a um certo José da Silva.

Em 1850, em função da nova lei de terras, o imóvel foi registrado na Paróquia de Guarapuava e vendido em 1871 a Joaquina Maria Gertrudes. Novamente alvo de demanda judicial, pois a decisão de 1843 estava sob suspeita de fraude, o juiz municipal de Guarapuava garantiu o domínio a Gertrudes, depois de ouvir testemunhas e a Fazenda do Estado.

Já na República, em 1892, ela transferiu a propriedade a um neto, Valêncio José de Camargo, que em 1929 vendeu a metade da já chamada fazenda Santa Cruz à firma curitibana Irmãos Mattana & Cia Ltda e a outra metade a Ernesto Ferreira Nunes.

Se já estava complicada pelo tempo e pela passagem de mãos, a partir daí, as coisas começam a se complicar ainda mais: a Justiça apurou que a propriedade tinha como documentação apenas uma certidão forjada pelo escrivão Joaquim Maximiano da Silva, em 18 de maio de 1925.

Nessa ocasião, a mando de Francisco Santa Maria, ele certificou a existência da suposta sentença de 1843 como primeiro documento de posse do imóvel. Em 1944, o juiz Lauro Fabrício de Melo Pinto, da Comarca de Guarapuava, anotou:

“Toda a documentação dos réus, a começar pelo seu documento básico, o seu documento número um a certidão de folhas 182, tudo é fraude inominável, criminosamente tramada, com maior ou menor habilidade. O réu, Francisco de Santa Maria, ditou essa certidão a um funcionário interino, bisonho e inexperiente (Joaquim Maximiano da Silva)”.

O tempo passa…

Para o juiz, “a prova documental dessa fraude está na certidão de folhas 364, extraída do próprio protocolo de audiências do Juízo Distrital desta Freguesia, nos anos de 1842 a 1845. Para má sorte do falsário e dos seus sequazes, na empreitada fraudulenta, o próprio dia dez de julho transcorreu sem que houvesse requerimento algum na audiência do Juiz de Paz. Nem ninguém compareceu a essa audiência para requerer coisa alguma”.

O tempo passava e a trama se adensava, porque em 1943 o governador Manoel Ribas ajuizou uma ação contra Francisco Santa Maria e a Companhia Nacional de Papel e Celulose, donos da fazenda Guavirova, para anular suas transcrições e reverter ao patrimônio do Estado as terras dessa fazenda.

A Fazenda Santa Cruz, para o Estado, era resultante de uma grilagem*: terras públicas tomadas do Estado com base em um documento recente, mas envelhecido em datas e aparência.* Grilagem – Engavetar grilos mortos com documentos novos para que as toxinas da decomposição do inseto deem ao papel a aparência antiga. Monteiro Lobato conta a origem da expressão no livro A Onda Verde (https://x.gd/C9wtv)

Passou por muitas mãos

Um século depois do grilo, a Justiça dava ganho de causa ao Estado do Paraná, revertendo ao seu patrimônio as terras do imóvel situadas à margem direita do rio Piquiri.

Mas não fazia sentido cancelar o registro do Guavirova e manter o do imóvel Santa Cruz, na margem esquerda do rio, “uma vez que ambas as propriedades tinham origem na mesma sentença de conciliação de 1843 que para a Justiça do Estado nunca existiu” (Ação Ordinária de Anulação de Escrituras).

Antes que isso viesse à tona, Ernesto Ferreira Nunes vendeu todas as suas terras a um grupo de compradores integrado por Guerino Rebelatto, Mário de Déa, Joele Ezequiel Zibetti, Benjamim Furlan e Aldo Crema, ainda em 1929.

Por sua vez, a família Mattana venceu 51% das terras a um grupo formado por Oreste Floriano e Iolanda Bonato, Amadeu e Eunice Bordin, Mário e Júlia Gewer, Antônio Fidélis Zibetti e Ciro de Marco, venda transcrita no Registro de Imóveis de Laranjeiras do Sul.

O restante das terras, os Mattana transferiram a Moacir Índio do Brasil Campos, Humberto Puglielli e Luiz Mattos, entre 1950 e 1951. Na sequência, Aldo Crema vendeu a Luiz Mattos a parte que comprou de Ernesto Nunes. Mattos, em 1951, também comprou de Moacir Campos e Humberto Puglielli as terras que estes adquiriram dos Mattana.

A União d’Oeste

Mesmo com o grilo já exposto, em 1951, o colonizador cearense Adízio Figueiredo dos Santos considerou a área como devidamente registrada e adquiriu a propriedade das famílias Bonato, Bordin, Gewer, Zibetti, Marco, Furlan, Déa e Rebelatto.

Em nova transferência, ainda em 1951, Luiz Mattos e esposa cederam parte de suas terras a Paulo e Antônio Menegazzo. Eram 52 mil alqueires. “Mattos também vendeu parte das terras a Marinho Tavares da Silva (Laércio Souto Maior, História do Município de Assis Chateaubriand).

Luiz Mattos, Adizio Figueiredo dos Santos e Constancio R. Silveira Filho fundaram a Sociedade Colonizadora União d’Oeste Ltda., com sede em Apucarana, para lotear e vender as terras adquiridas.

A ação do Estado para anular o título obtido pela União d’Oeste sobre as terras da fazenda Santa Cruz, segundo Adizio Figueiredo, “criou uma polêmica infernal, uma vez que o nosso título já era definitivo” (citado por Carlos Valmor Bazanella em Nova Aurora – Sua História, Sua Gente).

O “inferno” se deu em ação iniciada em 20 de janeiro de 1953: “o Estado do Paraná alegou que, por força do Decreto nº 300 de 03/11/1930, o imóvel lhe pertence. Acrescentou que era precário o título de aquisição detido pela Sociedade Colonizadora União D’Oeste Ltda”.

Demandas judiciais à parte, a história de Nova Aurora não começou com a colonizadora União. A vila já existia, embora sem esse nome. Em depoimento ao historiador Maurilio Rompatto (https://x.gd/C9nLt), o pioneiro Clary Boaretto, fundador em Cascavel do Tuiuti Esporte Clube, disse que “[…] quando o Adízio veio (com a colonizadora) pra cá, já existia uma igreja, já tinha escola, já tinha tudo”.

Laurentina Esser foi além: “[…] ele desapropriou famílias, jogou para fora dos ranchos, botou fogo nos ranchos, para as famílias não voltar e fez sumir […] e, ainda tomou o que elas tinham plantado”.

História longe de acabar

O Estado não tinha a menor dúvida de que o Grilo Santa Cruz estava inteiramente comprovado. Por conta disso, o DGTC instalou a 9.ª Inspetoria Regional de Terras e Colonização em Cascavel “para organizar a distribuição da terra na região, legalizando a situação dos posseiros que se encontravam na área com morada habitual e cultura efetiva da terra” (Maurilio Rompatto, Conflitos agrários no oeste do Paraná – O caso do “Grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora [1952-1958]).

Adízio Figueiredo depois saiu de cena ao não suportar as dificuldades para manter seu projeto de colonização, mas Oscar Martinez adquiriu o Grilo Santa Cruz e criou ali uma das mais prósperas cidades do Oeste paranaense: Assis Chateaubriand.  

“Tão logo adquirem os títulos de propriedade, os colonizadores da União do Oeste começam os preparativos para lotear e vender as terras da fazenda Santa Cruz, Cachoeira ou Rio dos Patos. O primeiro passo nesse sentido foi começar pela limpeza da área expulsando os posseiros que a ocupavam. […]. Logo, os rumores de violência cometida pela colonizadora contra os posseiros começaram a chegar à capital do Estado (Maurilio Rompatto).

As colonizadoras, efetivamente, trouxeram progresso para a região, plantando cidades prósperas, mas, com raras exceções, estão ligadas a práticas de violência e derramamento de sangue. 

Uma história que ainda terá novos e surpreendentes desdobramentos – um dos quais a evidência de que o tempo e os desentendimentos entre governos e a Justiça conseguem tornar perfeito um crime comprovado. 

 

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