Missão: transformar doentes em soldados

O 1.º Batalhão de Fronteira precisava tirar 600 soldados de uma população miserável e subnutrida. O médico militar Altamiro Vianna recrutou centenas de incapazes para a guerra, incorrendo em desobediência e sofrendo inquérito aberto pelo comandante, capit

Em 1943, quando o Brasil sinalizou o envio da FEB para participar dos combates da II Guerra Mundial, chegaram a Foz do Iguaçu ordens expressas do Rio de Janeiro para adaptar a força militar às exigências de um país em estado de guerra.

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O recém-criado 1.º Batalhão teria que redobrar a vigilância na fronteira com a Argentina e o Paraguai e os soldados em serviço no Oeste paranaense já bem preparados para combater deviam ser enviados para lutar na África, foco de ação dos Aliados nessa época.

A tática empregada era forçar as tropas nazifascistas a recuar para suas linhas. Elas reagiam às derrotas sofridas na Ucrânia para o Exército Vermelho e a SS alemã até conseguiu libertar o ditador fascista italiano Benito Mussolini, que preso pelo rei da Itália.

A urgência de enviar tropas à guerra deu origem a um dos episódios mais emocionantes da história das Forças Armadas no isolado território oestino porque o 1º Batalhão de Fronteira recebeu também a ordem de adestrar centenas de novos soldados.

“Recrutar às avessas”

Remanescente da extinta Companhia Independente de Foz do Iguaçu, o primeiro tenente médico Altamiro Vianna (1916–2004), que um ano antes chegara do Rio de Janeiro recém-casado, recebeu a incumbência de selecionar cerca de 600 jovens para conscrever como recrutas.

Logo ao chegar, o médico se deparou com o povo miserável, ignorante e doente. Os colonos de origem alemã e italiana haviam sido expulsos da região. Agora, seu dever patriótico era selecionar em meio a essa população empobrecida os jovens mais capazes para se incorporar à tropa.

Vianna, encantado por uma revolucionária literatura estrangeira(*), calculou que se tirasse os homens aptos do trabalho que faziam no campo e na cidade iria desestruturar toda a vida fronteiriça, já destroçada pela expulsão dos colonos de origem italiana e alemã.

A seu ver, deslocar os jovens capazes da produção agrícola para incorporá-los à tropa iria piorar o quadro de miséria e até desabastecer o quartel.

“Resolvi, então, recrutar os recrutas às avessas: o homem forte, robusto, ficava de lado para que pudesse continuar seu trabalho no campo”, contou o médico em depoimento sobre o drama que protagonizou na isolada Foz do Iguaçu na década de 1940.

*A Odisséia de um médico americano, de Victor George Heiser (1873–1972), narra a história de um sanitarista atuando na salvação de vidas em dezenas de nações pobres.

O susto do comandante

Aproveitar os mais capazes era o dever de Vianna, mas contra toda a lógica de uma correta seleção de homens para a defesa da Pátria, o médico recrutou apenas jovens desnutridos e anêmicos, alheios à produção de gêneros alimentícios e que não davam vitalidade econômica à cidade.

“No dia em que aqueles recrutas, ainda à paisana, desfilaram, desajeitados, sem energia, diante do comandante, este se assustou pela precária qualidade do material humano que via”, escreveria Vianna, relatando suas memórias.

Ao ver soldados incapazes de defender a Pátria se arrastando no desfile para se perfilar, o já estressado comandante, capitão Moacyr Lopes de Resende, sempre envolvido em conflitos com a Prefeitura e a Polícia, advertiu severamente o médico sobre a imprudência cometida.

Vianna retrucou: “Esses lastimáveis recrutas, depois de tratados e alimentados, darão ao Exército um contingente que encherá seu comandante de orgulho”.

Resende não se deixou convencer e pediu um inquérito a seus superiores. “Eu estava em atividade febril”, contou o médico, ao atestar como “aptos” centenas de elementos incapazes de servir às Forças Armadas, especialmente em tempo de guerra.

A defesa do médico

Vianna estava com a carreira em risco, pois o comandante do Batalhão não tinha alternativa a não ser relatar o caso aos superiores, cumprindo o dever militar de apurar qualquer irregularidade.

Resende, portanto, não poderia ocultar o procedimento incomum do médico de considerar aqueles frangalhos humanos aptos para servir, mas nos meses seguintes ignorou o assunto.

“Fora dos meus olhos, porém, a máquina burocrático-militar se movimentava com lentidão, dentro da extrema dificuldade de comunicação existente, para proceder ao inquérito solicitado”, narrou o médico.

O major médico Henrique Moss de Almeida, oficial superior de saúde encarregado de levar a cabo a investigação, finalmente chegou a Foz de Iguaçu, vindo de Curitiba.

Recolheu a documentação disponível e instaurou o inquérito sobre os procedimentos inusitados do médico militar, que precisou se defender sozinho frente à punição iminente por desobediência em tempo de guerra.

“Tratei tensamente a verminose e o paludismo que instava quase a totalidade do contingente”, depôs Vianna no inquérito. “Curei a anemia resultante daquelas infestações. Em colaboração com o dentista do batalhão, participei da extração dos dentes com foco de infecção, na grande maioria dos recrutas”.

A decisão final

Enquanto o pedido de inquérito se arrastava, os precários recrutas recebiam alimentação regular e praticavam os exercícios físicos normais da tropa, com regime de trabalho e repouso regulares.

Com outros cuidados profiláticos, eles se transformavam em verdadeiros soldados. A engorda média observada em menos de três meses foi de 13 quilos por individuo.

O que o major Henrique Moss de Almeida encontrou no quartel, portanto, foi uma tropa de homens corados e bem nutridos.

Em lugar da punição esperada, o médico Altamiro Vianna recebeu então um entusiasmado elogio por parte do responsável pelo inquérito e também do próprio capitão Moacyr Lopes de Resende, seu comandante já orgulhoso.

Aliás, Resende se destacou depois junto aos superiores por ter agido nesse episódio estritamente de acordo com a severa disciplina militar.

Desde o início de seu comando sempre enviou relatórios com denúncias sérias e severas críticas, em guerra aberta com os prefeitos nomeados pela ditadura.

O almoço da concórdia

Naqueles tempos de guerra, com a missão de espionar a movimentação dos elementos pró-nazistas no Brasil e na Argentina, o comandante Resende sofreu a acusação de violar a correspondência diplomática platina.

Certo dia, Resende recebe um aviso do hotel: chegaram ao Porto Aguirre em vários caminhões novos um contingente de trinta praças e seis oficiais da Gendarmería de Buenos Aires que vinham reagir à espionagem brasileira.

O cônsul brasileiro em Posadas, Lúcio Schiavo, denunciara aos militares brasileiros que o cônsul argentino em Foz do Iguaçu, Eduardo Bianchi, simpatizante nazista, fazia operações financeiras no Rio de Janeiro para o cônsul alemão.

Houve, de fato, a censura às correspondências do consulado. Ao saber da presença do intimidador contingente estrangeiro em Porto Aguirre o comandante Resende agiu com sagacidade: convidou o comandante argentino, coronel Adolfo Orandi, seu estado maior e respectivas esposas para um almoço no Batalhão de Fronteira. 

Quando os argentinos foram embora o comandante continuou sua guerra particular com o prefeito (nomeado) Nélson Nascimento Ribeiro, que também controlava a polícia.

Três anos depois a ditadura caiu e houve a primeira eleição direta para prefeito. Com a volta da democracia, Resende fez uma bela carreira no Exército, granjeando estima e elogios por sua dedicação à história militar, chegando ao generalato.

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