O romance e a realidade

As transformações políticas e sociais, pelais quais o Ocidente, ao longo dos últimos séculos, passou são tão indiferentes à mentalidade do nosso povo que cujo conteúdo formador da estrutura pensante nem sequer se passa pelas consciências iluminadas que buscam ajustar o mundo. Essas transformações, no entanto, estão bem documentadas num gênero específico da literatura: o romance.  Muitos foram os romancistas que nos deram testemunhos ou anteciparam as grandes revoluções. Essa noção está tão distante do público brasileiro que, aquilo que vou expor aqui, soará estranho aos ouvidos e, sobretudo, ridículo aos olhos – o que se compreende por romance, atualmente, é tão pueril que não adianta se alongar no assunto. 

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A fonte na qual esses grandes romancistas beberam os temas dos seus escritos é a realidade. Enxergavam, com clareza, todas as modificações sofridas. A movimentação intelectual por trás das ideias que se espalhavam pelas classes, as forças políticas que se arraigavam nas entranhas sociais, a desordem de espírito, fruto dessas ideias deslocadas, capaz de levar uma nação ao fracasso; a tensão existencial entre o terreno e o eterno, os níveis de consciência dos personagens, dentre outros pontos.  Fiéis ao que os seus olhos viam, presentearam-nos com páginas que são verdadeiras profecias do abismo no qual vivemos. O germe das tribulações que estupidificaram os povos no passado e cujos desdobramentos estão bem visíveis, encontra-se numa plêiade de gênios: Balzac, Dostoiévski, Jakob Wassermann, Machado de Assis, Robert Musil, Thomas Mann, para citar alguns.   

Em Os Demônios, esse russo fantástico, descreve, com pelo menos quarenta anos de antecedência, a agitação intelectual que desencadeou a Revolução Russa de 1917. Uma Rússia, cujo cenário cultural se via pintado de males morais, de um socialismo ateu ardendo nas consciências, de um tumulto religioso, desencadeava as mais profundas doenças espirituais que mais tarde elevaram ao poder assassinos como Lênin e Stálin. Nesse romance, temos o retrato do movimento comunista nas suas duas correntes, a fabiana e a radical, mais tarde concretizado por Lênin com a teoria do Teatro das Tesouras, e que no nosso país encontramos na dicotomia esquerdista entre os tucanos e os petistas. Em outras obras, Dostoiévski, dá-nos uma gama de temas e personagens que circulam pela existência humana desde sempre. Os seus personagens, são criados com pelo menos três níveis de consciência: eis o exemplo em Os Irmãos Karamazov. 

Numa Alemanha destruída pela primeira guerra, onde o desemprego e a miséria, as dívidas e o ódio nacionalista, afundavam a sociedade num abismo de trevas, Wassermann, ensina-nos, que, a desordem e o definhamento espiritual dos indivíduos, são capazes de dar a um demagogo assassino plenos direitos para matar. Em Etzel Andergast, segundo volume da sua trilogia, composta por O Processo Maurizius e A terceira existência de Joseph Kerkhoven, encontramos o germe nazista. Os personagens retratados, em busca de um sentido de vida, circulam entre os mais variados grupos. Etzel, que no primeiro volume desgraça a vida do pai na luta pela justiça perfeita – ideia muito comum da mentalidade revolucionária -, agora surge como um legítimo filho das ideologias. Dono de uma imaginação aguçada, flutua entre comunistas e nacionalistas, na ânsia de encontrar as raízes da angústia que povoam o imaginário social alemão. Interessante é perceber como os membros desses grupos se colocam como portadores de uma moralidade salvadora e, por fim, acabam por transgredir essa própria moralidade proclamada.

Percebemos o estado declinante de uma nação. Há muito mais a desvendar, mas aí deixo por conta do leitor interessado. 

São dois exemplos apenas, mas existem muitos. Em Esaú e Jacó, nosso Machado, traça a transição da Monarquia para a República e os ideais da Revolução Francesa que minavam o congresso brasileiro. Na história da literatura, o romance, é o gênero que melhor descreve os anseios de um povo, as transformações espirituais, as articulações humanas, as forças políticas subjacentes, as ações de homens concretos que se movem de maneira imperceptível aos olhos desatentos. É, por meio de um grande romancista, que percebemos a realidade. É ele que investiga as profundezas da alma humana. 

Fonte: Dionatan Rafael Toledo dos Santos

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