Os mordedores de gorjetas

O Vale Esquecido significou substituir verdades incômodas por narrativas de progresso: Nova Aurora surgiu em 1948, mas o brasão só lembra datas também novas, dos anos 1960

Após as traições governamentais às promessas de Manoel Ribas, que chamou os posseiros a vir ao Paraná com a garantia de ter as terras registradas, e de Bento Munhoz da Rocha Neto, assegurando que iria proteger os direitos dos colonos, os jagunços levaram terror aos produtores sem que as autoridades paranaenses tomassem providências efetivas para assegurar o direito à propriedade. 

O abandono e o desprezo às necessidades dos colonos causaram revoltas que não foram contempladas com soluções, mas revidadas com violência policial e liberdade de ação aos jagunços das colonizadoras particulares.

No segundo governo de Moysés Lupion (1956–1961) já não havia mais distinção entre os jagunços responsáveis por grilagens de terras e a ação repressora da polícia.

O Paraná se transformou descaradamente em Estado-jagunço em junho de 1958, quando a Polícia, partindo de Cascavel, cercou a cidade de Palotina, arbitrariedade desfeita pela intervenção do Exército. 

Depois houve uma operação para promover o esquecimento. Muitos responsáveis por situações criminosas viraram nomes de ruas, escolas e praças. 

Colonos atraídos e traídos 

Faz parte da operação de esquecimento a lenda sobre a presença dos posseiros ter sido “espontânea”, expondo os colonos revoltados como invasores que ocupavam a terra sem direito. 

Na verdade, os posseiros reocuparam o Oeste. A região havia sido primeiramente área de domínio dos jesuítas espanhóis e até o início do século XX estava entregue ao controle das obrages anglo-argentinas dos portos do Rio Paraná. 

Chamados a reocupar a terra, os posseiros vieram e trabalharam nela, mas a exaltação do progresso trazido pelos vencedores dos conflitos agrários dos anos 1950 se tornou, por sua visibilidade, a verdade para quem se limita a consultar dados oficiais e ouvir as histórias de quem venceu.

Os colonos foram atraídos pelas sociedades de imigração, pela propaganda das colonizadoras e promessas governamentais de posse assegurada, mas foram traídos pela roubalheira de terras montada por empresas, governo, jagunços e burocratas. 

Por ausência, vítimas de chacinas e crimes encomendados jamais poderão dar sua versão. Uma luz forte sobre a distorção dos fatos, porém, foi dada pelo historiador Maurílio Rompatto ao salientar o esquecimento provocado por interesses governamentais e particulares.

Seu livro “Piquiri O Vale Esquecido”, recupera a história e a memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” especificamente na colonização de Nova Aurora.

Depoimentos vivos

Cotejando dados oficiais com histórias de quem sobreviveu, o historiador teve duas vantagens sobre outros acadêmicos que abordam a história do Oeste paranaense: primeira, ele nasceu na própria região, em Formosa do Oeste, e conseguiu localizar pessoas que viveram na pele as glórias e tragédias da colonização. 

“Só o título garantia a propriedade sobre a posse da terra, instrumento legal que poderia proteger o posseiro da grilagem. Os funcionários da Inspetoria [de terras] tinham mais interesse pelo negócio da terra do que pelo trabalho agrícola. Muitas vezes recepcionavam os documentos de titulação solicitados e tão esperados pelos posseiros e os vendiam a grileiros ou a especuladores imobiliários”. 

Depois de obter os títulos, escreveu Rompatto, “os grileiros ainda recebiam o auxílio da força pública para expulsar os posseiros das terras ou eles mesmos faziam o serviço valendo-se de força particular composta por jagunços. Dificultando e/ou confundindo burocraticamente o posseiro, a Inspetoria, às vezes, forjava documentos e títulos de propriedades para se vender diversas vezes a mesma terra”.

Depois de muito insistir para obter o reconhecimento legal de suas terras, os colonos começaram a entender o mecanismo da grilagem: as colonizadoras “influenciaram os funcionários da 9ª Inspetoria de Terras e Colonização de Cascavel, encarregada da titulação, para que dificultassem ao máximo o processo de regularização”.

Zezinho da Inspetoria sob pressão 

Ironicamente, a Inspetoria de Terras, criada em dezembro de 1952 com ampla jurisdição, compreendendo os municípios de Cascavel, Guaíra, Foz do Iguaçu, Toledo, Guaraniaçu e Laranjeiras do Sul, tinha exatamente o objetivo de agilizar os registros de imóveis rurais: “Processar as legitimações de posse requeridas na forma legal, para efeito da expedição do competente título de domínio aos posseiros”. 

Clemente Esser conheceu bem esse mecanismo. Tentando o registro de suas propriedades, partiu de Nova Aurora oito vezes em direção a Cascavel para requerer a documentação, sem sucesso. Sentindo-se enganado, em uma das viagens comentou a situação com “um jagunço da Inspetoria de Terra, um de chapéu preto, bem barrigudão, com revólver na cinta”. 

“Olha, eu vou te dar uma dica”, sugeriu o jagunço. “Tem que fazer que nem nós; quando nós queremos um lote de terra e o inspetor não quer dar, a gente chega até ele e diz: ou você dá se não nós te mata! E se não fizer uma proposta brava dessa aí, vão te passar pra trás!”

Esser não chegou a dizer explicitamente que ameaçou o inspetor José de Oliveira, conhecido como Zezinho da Inspetoria, mas declarou que seguiu a orientação dada pelo jagunço de pressioná-lo, deixando claro que não aceitaria mais demora: “Aí ele acertou tudo. Mas se não fosse aquela dica ali, eu acho que eu tinha ficado sem nada!”

A chave necessária

O inspetor José de Oliveira construiu uma biografia respeitada em Cascavel. Paulista de Bernardino de Campos, nascido em 1927, Zezinho da Inspetoria veio para Cascavel em 1956, estabelecendo-se como empresário agropecuarista e se elegendo vereador em cinco pleitos eleitorais consecutivos, cumprindo 22 anos de mandato, período em que foi secretário e presidente da Câmara Municipal.

Para os colonos, desde muito antes da presença de Oliveira à frente da 9ª Inspetoria, não bastava ter o direito de registrar a própria terra nem perder horas de trabalho correndo a Cascavel em busca da solução, pois os burocratas preferiam segurar a documentação indefinidamente até que fosse utilizada a chave necessária para destravar o registro: a propina. 

Após idas e vindas infrutíferas, os colonos cansados de tanto perder tempo esperando caíam nas garras dos “mordedores de gorjetas”, expressão utilizada pelo agricultor Clemente Dariva.

Pelo depoimento de Dariva, havia títulos de propriedade que deveriam ser concedidos aos posseiros, mas eram dados “aos jagunços da Inspetoria e das Companhias […] ou muitas vezes vendiam pra outros”. 

“Aquele que estava na terra, mesmo tendo a licença de roça, não era dono definitivo da propriedade porque não tinha título de propriedade. Muitos tinham licença, requerimento de título de propriedade, porque já tinha formado lavoura e tudo, perdia para outro porque os títulos eram desviados lá em Cascavel”.

A aurora da verdade

Mesmo com a posse da terra, licença de roça e requerimento de título de propriedade, para ter o título definitivo o colono tinha que “dar gorjeta para funcionário da Inspetoria, pagar pra ter a terra, que muitas vezes já tinha pago por ela no ato do requerimento”, afirmou Dariva. 

“Isso quando o título não custava duas ou três vezes o valor da terra. Ficava mais caro o documento do que a terra. Mas fazer o quê? O posseiro precisava do título pra mais tarde não ser despejado por quem viesse a tê-lo”.

Nova Aurora foi o nome dado à vila, cidade e depois Município pelo padre Luiz Bernardes, da paróquia de Corbélia. Antes, o lugar era conhecido como Encruzilhada Tapejara, que no idioma indígena significa “Senhor dos Caminhos”.  

Por décadas o nome otimista de Nova Aurora foi turvado pelas angústias dos posseiros derivadas do grilo Santa Cruz, grande desvio de terras que causou infelicidade e mortes na região (https://x.gd/wZHYp).

Nova Aurora começou a se formar na década de 1940, mas seu brasão limita a história do lugar aos anos de 1967 e 1968. Só a apuração dos fatos sem retoques suavizadores sobre os problemas agrários pode desmontar a falsa história dos posseiros como invasores.

Em geral ocorreu o contrário: a grilagem de terras se deu expulsando os verdadeiros donos. Nesse sentido, a contribuição do pesquisador Maurílio Rompatto é inestimável. 

100 anos da revolução: A tese do branqueamento

Às vésperas da revolução, em 28 de junho de 1924, o deputado mineiro Fidélis Reis defendeu enfaticamente uma tese que sempre teve curso em parte da elite nacional: o “branqueamento da raça”.

Retomava a ideia dos deputados Andrade Bezerra e Cincinato Braga, que desde 1921 queriam proibir “a imigração de indivíduos humanos das raças de cor preta”, sob pena de expulsão do país, a menos que tivessem dinheiro para se manter no país até ir embora.

Fidélis Reis, em 1924, não só retomava a proposta de “branquear” o Brasil como também rejeitava a vinda de imigrantes japoneses e chineses. Em setembro do ano anterior um terremoto no Japão matou mais de cem mil pessoas. A China tinha farta mão de obra, mas era ainda um país pobre, longe de ser a atual potência emergente. 

Interessava à agricultura brasileira atrair de lá famílias úteis para o desenvolvimento rural do país, mas os projetos racistas criavam dificuldades, até ser barrados pela Constituição. Os imigrantes de várias origens conseguiram vir e contribuíram de forma destacada para o desenvolvimento do agro brasileiro.

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Fonte: Alceu Sperança

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